Bakairí – Kurâ

David J Phillips

Autodenominação: Kurâ que quer dizer ‘gente’ ou ‘ser humano’ e eles se consideram a humanidade por excelência (Barros 1999). Também significa ‘bom’ enquanto kurâpa quer dizer ‘não nós’ e também ‘ruim’, ‘prejudicial à saúde’ (Barros 1998).

Outros Nomes: Bacairí, Kurâ (SIL), Kurã. O nome Bakairí é usado nas crônicas históricas do século XVIII, mas sua origem é desconhecida (Barro 1999).

População: 1.401 (DAI-AMTB 2010), 950 (ISA 1999). A população cresceu entre 277 em 1968 até 898 em 1999. 700 em 11 grupos locais (Barros 1999).

Localização:

  • Na cabeceiras do rio Xingu, Mato Grosso. 9 ou 10 aldeias (SIL).
  • T I Bakairi (61.405ha), no município de Paranatinga, MT, homologada e registrada, com 606 Bakairí em sete grupos.
  • T I Santana (35.471ha) no rio do mesmo nome, no município de Nobres, MT, homologada e registrada, onde vivem 183 Bakairí em quatro grupos.

Língua: Bakairí, da família linguística Karib meridional, Bacia do Xingu. Alfabetismo na língua menos que 1%. Uma Gramatica, cartilhas de alfabetização e porções bíblicas foram produzidas. Alfabetismo em português 15-20% (SIL).

História:
O lugar de origem dos Kurâ era a confluência do rio Verde com o rio Paranatinga. Devidos aos ataques dos Kayabi e outros e suas tensões internas, os Kurâ se dividiram em três movimentos. Um, a maioria, viajaram para o nordeste na direção do rio Xingu e perdeu contato com os outros. Outro foi para as cabeceiras do rio Paranatinga e no princípio do século XIX ficou envolvido com a pecuária dos colonos. O terceiro mudou-se para as cabeceiras do rio Arinos e do Santana e ficou envolvido com os garimpeiros na bacia do rio Tapajós (Barros 1999).

Estes últimos dois grupos do Santana e do Paranatinga tiveram contato com a Diretoria Geral de Índios em Cuiabá. Foram obrigados trabalhar na extração da borracha. Tentaram mudar se em 1920 a 1940 para o Paranatinga, mas foram expulsos, por ser alegados de roubar gado. O Posto Santana foi estabelecido em 1965 e os missionários do SIL começaram a trabalhar com eles (Barros 1999).

O grupo do alto Paranatinga eram guias e canoeiros de expedições. Em 1884 Karl von den Steinen, o antropólogo alemão, liderou uma expedição para as cabeceiras do rio Xingu, uma região até então não mapeada. Ele encontrou uma comunidade de Bakairi do segundo movimento na fonte do rio Paranatinga, que já era meio assimilado desde 1820. Com o chefe a expedição avançou para o rio Batovi (Tamitatoaia) e desceu o rio em canoas e depois dezessete dias descobriram uma canoa dos outros Kurâ. Seguindo uma trilha na mata, atravessou uma roça em processo de coivara e acharam três palhoças de forma de colmeia dos Bakairí, até então não contatados. O artesanato do povo impressionou a expedição. Os índios experimentaram a roupa do antropólogo von den Steinen. Assim o primeiro grupo dos Kurâ renovou contato com os do rio Paranatinga. Von Steinen teve uma atitude realista dos índios e os encarou como humanos, e não como selvagens nobres ou subumano e escreveu os contos e as conversas dos índios. A expedição continuou a descobrir outras etnias (Hemming 1987.402).

Cel. Rondon quis pesquisar todos os rios que formam as cabeceiras do rio Xingu. Os Bakairí ajudou a uma expedição do SPI em 1915 para mapear o rio alto Teles Pires ou S. Miguel e o Paranatinga, onde foi ameaçada pelos Kayabi e voltaram. Cel. Rondon liderou outra expedição em 1920 que desceu o rio Culene e subiu o Culiseu e estabeleceu um Posto chamado Simão Lopes no rio Paranatinga para os Bakairí que funcionaram como mediadores no contato com as outras tribos e canoeiros para as expedições.

O inglês excêntrico e racista Fawcett, depois outras aventuras na Bolívia e no Brasil, creu que as ruínas de uma civilização antiga existia, escondida no meio rio São Francisco na Bahia, mas quis iniciar sua viajem nas cabeceiras do Xingu! Começou ao Posto no rio Paranatinga sem segurar a ajuda do SPI. Ele e seus dois companheiros ofenderam os Kalapalo e foram mortos na margem do Lago Verde. Os Kalapalo temeram que os Bakairí contassem aos brancos (Hemming 2003 77-9).

Em 1920 foi criado o Posto Indígena e foi demarcada a T I Bakairí e somente os Bakairí inclusive os do Xingú mudaram-se para viver na Terra Indígena.

Missionários Thomas e Sra Young, da South American Indian Mission, com sua enfermeira combateram uma epidemia de malária entre os Bakairí nos anos 30 (Hemming 2003.255). A Missão atuou por 30 anos e só retirou pela pressão dos Bakairí (Barros 1999). As aldeias foram aglutinados em uma só aldeia ao lado do Posto para facilitar a educação na escola implantada em 1922. Os que resistiram esta medida foram transferidos para outras Terra Indígenas. Em 1974 os Bakairí retiraram para o rio Culune (Barros 1999).

Os Villas Boas eram os primeiros para residir entre os povos do alto Xingu e um guia deles aprendeu português no Posto Simão Lopes. O jesuíta brasileiro João Bosco Burnier da CIMI trabalhou muitos anos entre os Bakairí e os Paresi e contextualizou a liturgia com elementos indígenas. Ele descobriu os Bakairí em pobreza com uma atitude de mendigo. Mas o padre foi morto por um policial em Ribeiro Bonito MT, em 1976 (Hemming 2003.341).

Estilo da Vida: Nas Terra Indígenas o cerrado predomina. Os grupos locais são denominados pelos nomes dos rios ou igarapés próximos, por Santana. O rio Santana é um afluente do Rio Novo, que por sua vez, é afluente do rio Arinos, do Juruena, do Tapajós. São agricultores e pescadores e também caçam e coletam. Têm suas roças nas matas ciliares e caçam sempre em grupo. Devido aos perigos supostos a elas, é vedada a presença de mulheres, antes da terra ser preparada para o plantio (Barros 1999).

Sociedade:
Há quatro comunidades de Santana, Nova Canaã, Boa Esperança e Quilombo. A T I Bakairí está na margem direita do rio Paranatinga (ou seja o Teles Pires), afluente também do rio Tapajós. Esta T I têm seis comunidades: Painkun, Kaiahoalo, Pakuera, Alto Ramalho, Atuby Aturua e segunda Painkun. Os Bakairí têm acesso as cidades de Nobres, Paranatinga e Cuiabá.

Os grupos locais são formados a partir de irmãos de ambos os sexos ou um casal a quem ajuntaram-se diversas famílias nucleares. Cada grupo tem um chefe que o representa diante de outros grupos. As casas são dispostas em ruas, mas a aldeia tem um centro ao lado da casa do chefe para as reuniões e os rituais (Barros 1999). Em alguns grupos tem-se o kadoêti (casa dos homens) na qual se guardam as máscaras rituais (Barros 1998).

As famílias nucleares podem sair e residir em outro grupo. Os casados vivem matrilocal até o nascimento do primeiro filho. Os avós maternos ou paternos dão nome à criança, escolhido entre os nomes dos ancestrais mortos e o nome dos mortos não se podem pronunciar até está assim em uso de novo. A criança recebe pelo menos quatro desses nomes (Barros 1999). Gostam de jogar o futebol. O parentesco é bilateral e afiliação do indivíduo é conforme as parentes paternas e maternas. É conforme seus nomes (de ancestrais) que ele se situa na sociedade e nos locais (Barros 1998).

Artesanato: Fabricam redes de algodão e as fibras de buriti.

Religião:
A maioria dos ritos se concentram na estação da seca. O Anji Itabienly ou Batizado do Milho, celebra o ciclo da ekuru, a força vital obtida pela alimentação das plantas ou animais vegetais. A festa é realizada na ocasião da primeira colheita do milho em janeiro ou fevereiro. No fim da estação das chuvas é o rito do Kápa que os homens se vestem de palha. O ritual Iakuigâde usa máscaras: Kwamby de forma oval que são de líderes e xamãs e as Iakuigâde que usam máscaras retangulares e representam os espíritos das águas. Todos os participantes são pintados. Há 23 mascaras rituais que representam uma espécie de peixes ou de animais e pássaros ribeirinhos. Também se realiza a festa de ‘furação das orelhas’ dos jovens homens. Este rito é realizado em frente à casa dos homens para os adolescente masculinos e envolve a escarificação e banho de preparados de ervas para fortificar os músculos. O rito do Kado é um tributo aos mortos (Barros 1999).

O conceito dos Kurâ abrange saúde e ordem (Barros 1998). A escarificação do corpo é um aspecto da cultura Kurâ. Apenas alguns grupos têm o escarificador (pain-hó) que é um pedaço de cuia com dentes de peixe-cachorro fixos. Estes grupos são ‘senhores’ do pain-hó. A escarificação é usado na aplicação de plantas medicinais com parte o ciclo da substancia vital ekuru da vegetação para o homem.

O ciclo da força vital (ekuru) é importante para os Kurâ. A ekuru está na vegetação e no alimento, seja vegetal seja a carne de animais herbívoros. A ekuru é perdida e ganha continuamente durante a vida e é vital para a saúde. Deve preparar os alimentos conforme a ekuru que contêm e eles não devem tocar o chão, onde a ekuru é reprocessada. A ekuru é reprocessada por passar pelo solo e enter nas plantas e os animais herbívoros. Quando este processo não se completa é a fonte de doenças. Por causa do perigo de feitiços o alimento deve ser aceito somente de parentes (Barros 1998).

A ekuru é perdida pelo cansaço na caça ou em derrubar arvores, fazer coivara ou pescar, ou manter relações sexuais. Quando a esposa está gravida o pai da criança deixa de fazer estas atividades para manter um alto nível de ekuru no feto e a mãe fica em semi-reclusão. Os pais evitam alimentos que contêm ekuru inapropriada ao crescimento do feto. O leite materno é por excelência a fonte de ekuru. As lagrimas perdem a ekuru e por isso não devem deixar a criança chorar. Os corpos do bebe e da mãe são sarjado com o escarificador e banhado com preparados de ervas medicinais. Os membros da família nuclear devem observar tabus de alimentos de uma maneira corporativa quando um dos seus está doente. A escarificação é uma das práticas terapêuticas para doenças e feridos (Barros 1998).

Cosmovisão:
O cosmo consiste de camadas com duas terras e foi organizado pelo herói Kwanóty. A terra em cima desta tem rios terrestres e subterrâneos. As águas deste rios estão guardadas em cima por uma redoma com suas bordas presas as beiras desta terra por grande sapos. O sol, Xixi, e a lua, Nunâ, são netos de Kwanóty, e alternam a suprir a luz nas duas terras. Há caminhos entre as duas terras conhecidos somente pelos pajés. Antigamente havia uma escada para os Kurâ subir, mas devido aos fuxicos feitos pelo povo Kwanóty, a escada foi tirada. Houve um dilúvio do qual se salvaram somente dois pares de irmãos. As duas terras se separaram e a redoma foi colocada entre elas. As forças cósmicas, os iamyra, circularam e os homens passaram a sofrer a dor, as doenças e a morte. Cada pessoa que morre libera dois iamyra, um sai do olho esquerdo e vai para viver nas águas controlando os peixes, o outro sai dos olho direito e vai para a terra em cima para controlar as estações do ano, etc.

Uma substancia vital, ekuru, está presente em todos os seres vivos, e na forma mais pura nas plantas. É obtida pelo alimento e eliminado pelos excrementos corporais e reciclados pelos vegetais. Os Kurâ se alimentam dos vegetais e os animais herbívoros. Na estação das chuvas a ekuru penetram o solo e a terra fica mais fértil. Na estação das secas o ciclo é muito lento. Por isso levantam os kadopy dos restos humanos que infestam casas abandonada e os lugares sombrios. Assustam os vivos e poluem o lugar e é um motivo dos Bakairí se mudar de residencia. Isso explica a diferencia entre o cerrado e a mata.

Na mata podem se encontrar não somente com os iamyra mas com um monstro Ynhangõnrom e seu auxiliar Karowi. Cada espécie de animal tem seu senhor que influi os Kurâ para não caçar em excesso. Há outros seres Horrendos como a onça branca enorme que vira as canoas (Barros 1999).

Comentário:
Desde a década de 60, James Wheatley e Joan W Jones, missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL) traduzem textos bíblicos para a língua Bakairi. Produziram cartilhas para alfabetização na língua materna.

O conceito da força vital Kurâ (ekuru) relaciona com dois conceitos da Bíblia. Isso demonstra a relevância de toda parte da Bíblia para a vida indígena. O espírito do homem (rauch) é a força que dá vida ao ser humano, dado diretamente por Deus. É associada com a respiração (Gen 2:7; Jó 27:3) e o Espírito de Deus (Sl.18:15; 146:4). Deus pode tirar este ruach (Gen 6:3; Sl. 104:29; Lc 23:46) e o homem morre. Mas é o meio de comunhão com Deus (Rom 1:9; 2:29; 8:16, etc). O espírito do homem destaca sua dependência total e a necessidade de ter um bom relacionamento com o Criador, inclusive em relação com as outras criaturas e sua força vital pelo segundo conceito.

O segundo conceito é o sangue que representa a vida do indivíduo, seja homem seja animal (Gen 4:10; 9:4; Lev 17:14). Na lei dada ao Israel o sangue dos sacrifícios é devolvido a Deus e derramado na terra (Ex 29:12), é proibido comer o sangue de animais domésticos e da caça (Lev 3:17; 17:13ss). A matança de animais domésticos deve ser tratada como um oferendo a Deus (Lev 17:1-4) e quem não cumpre ‘será considerado culpado de sangue’ do animal (Veja Gen 9:5: Deus pede conta do sangue de animais). A vida sacrificada e representada pelo sangue é substituta pela vida do adorador (Ex 12:13; Lev 16:27), que é realizada perfeitamente na morte de Cristo. A Bíblia demonstra a importância da vida de animal e homem, representada pelo sangue.

Os homens eram criados para se alimentar somente das plantas e assim sustentar sua vida (Gen 1:29) igual aos animais (Gen 1:30) e somente depois ter os animais como alimento (Gen 9:3), limitado para os animais herbívoros (Lev 11). Assim o Criador Cristão reconhece a força vital de todos as suas criaturas que tem que ser respeitada pelos homens, e a morte dos animais não é coisa sem consequência mas serve como regate do pecador até a morte do seu Filho. Podemos demonstrar aos Kurâ que o cerne do evangelho é radicado em conceitos da força vital (ekuru).

Bibliografia:

  • BARROS, Edir Pina de, 1998, ‘Saúde Indígena, Cosmologia e Políticas Públicas’, Ciudad Virtual de Antropología y Arqueología, 1a, Conferencia Virtual, www.naya.org.ar
  • BARROS, Edir Pina de, 1999, ‘Bakairí’, Povos Indígenas do Brasil, Instituto Socioambiental, São Paulo. pib.socioambiental.org/pt/povo/bakairi
  • DAI-AMTB 2010, ‘Relatório 2010-Etnia Indígenas do Brasil’, Organizador: Ronaldo Lidório, Instituto Antropos instituto.antropos.com.br
  • HEMMING, John, 1987, Amazon Frontier – the Defeat of the Brazilian Indians, London: Pan Macmillan.
  • HEMMING, John, 2003, Die If You Must – Brazilian Indians in the Twentieth Century, London; Pan Macmillan.
  • SIL 2009, Lewis, M Paul (ed), Ethnologue: Languages of the World, 16th Edition. Dallas, Texas: SIL International. Versão on line: www.ethnologue.com