David J Phillips
Autodenominação: Aranã, alguns são descendentes de um subgrupo dos Botucudo, porém todos no processo de revalorização de sua identidade étnica aceitam este etnônimo (Caldeira 2003). Assim os Aranã formam família com os Krenak, que são os tradicionais remanescentes Botocudos de Minas Gerais (Silva 2002.151).
Outros Nomes: Eram conhecidos por ‘Índio’ e ‘Caboclo’, usando os como sobrenome e patronímico apelido (Caldeira 2003).
População: 90 (DAI/AMTB 2010). Ultrapassa o número de 30 famílias (Caldeira 2003).
Localização:
Os Aranã estão dispersos em várias áreas rurais dos estados de Minas Gerias e São Paulo. A maior concentração é nas Fazendas Alagadiço e Campo, situada no Município de Coronel Murta, no Vale do Jequitinhonha, MG. Estão nas cidades de Araçuaí, Coronel Murta, Pará de Minas, Juatuba, Betim, Belo Horizonte e São Paulo. Outro grupo no Paraná (Silva 2002.152).
- Terra Indígena Aranã em identificação.
Língua: Português. Os Aranã falavam uma língua pertencente ao tronco Macro-Jê e família Botocudo, mas perderam totalmente, sendo falantes do português (Silva 2002.153).
História:
Faz-se necessário retornarmos à história para entendermos a origem étnica Aranã. Segundo a indigenista Geralda Soares “o território tradicional deles era no município de Capelinha, no Alto Jequitinhonha – onde hoje é Malacacheta, Itambacuri, Poté – Vale do Rio Urupuca”. É provavelmente nesta região que até o século XVIII os Aranã habitavam, fazendo parte da famosa confederação dos Botocudos. O professor José Carlos Machado, escrevendo sobre a história de Capelinha se refere a eles:
”… com a ferocidade do sangue botocudo nas veias, os Aranãs expulsaram as tribos mais mansas do Urupuca e Surubim e aí se estabeleceram. Mas não sobreviveram à luta com as tribos mais fortes na disputa por terras e alimentos. Além disso, o confronto com os colonos brancos e as doenças extinguiram completamente a tribo Aranãs (Oliveira. Internet).” (Silva 2002.148).
Mas vale citar também as palavras de Mattos (2000b.16) sobre a origem dos mesmos e o contato com os colonizadores:
”O povo Aranã também tem sua origem na história dos Botocudos. Distinguia-se, no entanto, politicamente, de outros grupos Botocudos, conservando inclusive uma pequena variação dialetal, significativa da distância que mantinham estrategicamente como forma de reafirmarem sua diferença.”
”Os Aranã foram aldeados pelos missionários capuchinhos em 1873, no Aldeamento Central Nossa Senhora da Conceição do Rio Doce, onde epidemias dizimaram a população. Alguns sobreviventes migraram para o Aldeamento de Itambacuri, de onde saíram os ancestrais dos Aranã de hoje para o trabalho em fazendas da região do Vale do Jequitinhonha (Silva 2002.148 citando Mattos).
Soares confirma estas informações e acrescenta que na grande revolta dos indígenas do aldeamento de Itambacuri, quando os Pojixá flecharam alguns padres, os Aranã estavam envolvidos na revolta e como os demais sofreram a represália. Próximo da cidade de Itambacuri, há um povoado chamado ‘Cachoeira dos Aranã’, em referência a este povo. O exército foi convocado e “fez uma limpeza étnica de Itambacuri até Campanário, matando todos os índios que encontravam na mata”. Era também comum naquela época o tráfico de crianças indígenas, sendo vendidas no litoral. Criaram então um asilo para meninas indígenas e não-indígenas órfãs, enquanto os meninos eram dados aos fazendeiros e colonos para serem criados como escravos. Uma família que vivia na região de Virgem da Lapa, trouxe um menino indígena de Itambacuri, ao qual deram o nome de Manoel. Este cresceu nesta região, se casou com uma indígena que possivelmente teria sido trazida também do aldeamento de Itambacuri (Oliveira.Internet) e com ela teve três filhos, fazendo algo totalmente inusitado na história indígena do Estado, e talvez do país: como prova da consciência de sua indianidade, afirmação étnica e protesto ao contexto de opressão que vivia “inseriu a denominação ‘Índio’ em seu nome, transformando essa palavra substantiva no patronímico de sua família” (Caldeira, 2001a.6) e passando a se identificar e ser identificado como Manoel Índio, ou ‘Mané Índio’. (Silva 2002.149).
”Um dos seus filhos, registrado como Pedro Inácio Figueiredo123, mas conhecido como Pedro Sangê, tornou-se capataz de uma grande fazenda chamada Campo, da família Campos, e foi além do seu pai na ousadia de reafirmar sua indianidade, pois registrou em cartório civil dez dos seus treze filhos com o sobrenome Índio – os do seu segundo casamento” (Silva 2002.150).
Tanto Manoel como seu filho Sangê são lembrados como homens de grande rebeldia, tendo enfrentado o sistema de escravidão através de atos, como o de se autodenominar ‘Índio’, afirmando sua identidade indígena e demonstrando resistência à dominação. A imagem de Pedro Sangê é sempre associada ao estereótipo indígena, mas ele possuía algumas habilidades que o tornava especial para a época, como comenta Caldeira:
”Descrito como homem de cabelos longos, que usava duas tranças, ele era muito respeitado por sua coragem e bravura. Todavia, ao contrário da maioria dos indígenas, Pedro possuía o domínio da leitura e da escrita, o que surpreendia e aumentava o respeito por ele, que também era sacristão de igreja, rezador, curandeiro, sapateiro e alfabetizador” (Caldeira 2001a.6).
Seu filho Pedro Índio de Souza, conhecido como ‘Gilmar’ acrescenta com orgulho que seu pai era também padeiro, cozinheiro, costureiro, foi militar e tocava violão e sanfona. Alfabetizou alguns dos seus filhos e ficou também conhecido pelas festas que organizava. Trabalhando em várias fazendas, foi na Fazenda Campo que ele permaneceu por mais tempo, constituindo assim a grande família Índio.
Nesta mesma fazenda a família Índio conheceu a família Caboclo e com ela se uniu. Mattos (1998.14,15) classifica a expressão Índio como um nome patronímico, enquanto Caboclo como um cognome pejorativo, carregado de discriminação, indicando que os primeiros se apoderaram desta expressão como forma de reafirmar sua etnicidade, enquanto os outros receberam a expressão ‘caboclo’, ou ‘cabôco’, como é pronunciado na região, como um estigma de depreciação por parte da sociedade regional. Segundo ela, “este grupo familiar é historicamente identificado como mão-de-obra desclassificada das grandes fazendas da região”. (Silva 2002.150).
Manoel Índio ou Manoel Caboclo era o principal ancestral que trabalhava para a família Murta, como tropeiro na região da cidade de Virgem da Lapa e avô dos Aranã vivos no fim do século XX. Pedro Sangê, nascido em 1883, falecido acerca de 1970, também trabalhava para a família Murta e ganhou uma educação formal. Uma de suas principais tarefas era a de ler diariamente livros de literatura e jornais para seu patrão. Entre os Aranã ele tem uma reputação por possuir grande espiritualidade e religiosidade, e tinha proximidade com os padres. Era conhecido por sua arte de cozinhar e confeccionar artesanato em couro, e negou-se a trabalhar na agricultura. Tornou-se líder do seus povo, e seu casamento uniu as famílias Índio e Caboclo (Caldeira 2003). As duas famílias se concentraram na Fazenda Alagadiço, propriedade da família Murta. Sua etnicidade indígena foi reconhecida em maio 2003 (Caldeira 2003).
Estilo da Vida:
Os Aranã, na sua maioria são trabalhadores do campo, agricultores de subsistência e agregados de fazendas, porém jamais perderam a consciência de sua indianidade. Lutaram pelo reconhecimento étnico junto à FUNAI em 2002, e a possibilidade de unir seu povo disperso em um só território e resgatar não somente seu estilo de vida comunitária, também os traços perdidos do seu modo de vida e cultura (Silva 2002.147).
A Fazenda Alagadiço é situada no Município de Coronel Murta, na margem esquerda da rodovia entre as cidades de Coronel Murta (7km) e Araçuai (33km). A Fazenda Alagadiço, aonde vivia a família Caboclo, também propriedade da família Murta foi doada para a Diocese de Araçuai em 1944. Algumas famílias Aranã receberam glebas, mas estas não eram suficientes para a subsistência (Caldeira 2003). O grupo Pankararu chegou, recebeu 60 ha e estabeleceu a aldeia Apukaré. Pediu ajuda aos Aranã no cultivo da terra e assim iniciou uma relação que resultou na luta pelo reconhecimento étnico destes últimos (Silva 2002.155).
A Fazenda Campo situa-se em um lugar de difícil acesso e árido. Os herdeiros Murta a dividiram e venderam para outros fazendeiros da região. Os Aranã que vivem lá habitam em choupanas muito simples, cobertas de palha. O desejo do grupo é adquirir posse definitiva destas duas fazendas como seu território tradicional. As terras da Fazenda Alagadiço não são suficiente para sustentar o grupo e as da Fazenda Campo já é propriedade de outros. Ambos as fazendas não têm acesso a um rio (Silva 2002.152, 155). Cultivam milho, feijão e melancia.
Sociedade:
Os Aranã consistem de duas famílias principais da mesma região. A família Índio tem sua origem indígena clara, pelas características socioculturais atuais e por sua linhagem genealógica que os liga à conhecida tribo Aranã do século XVIII. A família Caboclo, que por décadas vinham compartilhando as mesmas convicções, alguns costumes, o mesmo território, mas não tem uma origem muito clara. São resultado da escravidão aos brancos da região, e provavelmente se miscigenaram com negros e outros (Silva 2002.148, 151).
O casamento de Pedro Sangê com Maria Rosa das Neves da família Caboclo foi uma razão para a união entre as famílias e sua fixação em uma terra. Os filhos dos casamentos com não índios são considerados Aranã, e entre as famílias Índio e Caboclo os filhos são sempre identificados como Índio. Foi na Fazenda Campo que a comunidade consolidou sua vida sob a liderança de Pedro Sangê.
Assimilados pela cultura regional perderam o costume de possuir uma liderança do grupo, mas em 2002, os mais idosos nas duas fazendas e duas filhas de Pedro Sangê, que se tornaram professoras na cidade de Araçuai, tomaram a liderança (Silva 2002.154). A escola mais próxima fica na cidade de Coronel Murta, mas a Igreja Metodista alugou uma casa na cidade para facilitar a permanência ali durante a semana (Silva 2002.156).
Artesanato:
‘Depois do movimento em busca do reconhecimento étnico, eles passaram também a produzir artesanato e a praticar a pintura corporal. Entretanto, isto é claramente uma tentativa de reafirmação cultural e não uma prática preservada. O contato com os Pankararu os tem influenciado bastante’ (Silva 2002.155).
Religião: Sofrendo primeiramente o forçado processo de catequese pelos capuchinhos e posteriormente às proibições e imposições por parte dos fazendeiros, o grupo perdeu quase totalmente a sua religiosidade tradicional, sendo assimilados pelo catolicismo. Mas cada concentração de famílias tem demonstrado uma tendência religiosa bem particular.
Desta forma, o grupo da Fazenda Alagadiço é evidentemente católico, sendo fortemente apegados à veneração de santos, ao culto a Maria e à prática de novenas. Estas novenas são famosas na região, quando se reúnem para cantar, rezar e fazer peregrinações de até três quilômetros em atitude de veneração a determinados santos. Na verdade, quase toda população regional, principalmente da zona rural, pratica estas novenas’ (Silva 2002.153).
As famílias da Fazenda Campo, apesar de também serem católicas, apresentam fortes sinais de sincretismo. Praticam alguns rituais que segundo eles foram ensinados pelo patriarca Pedro Sangê, a quem são atribuídos muitos conhecimentos cerimonias. Este sincretismo é compreensível, pois o próprio Sangê era sincretista, sendo ao mesmo tempo curandeiro, benzedeiro e sacristão. Atualmente um dos filhos de Joverdil tem se tornado conhecido por seus poderes de cura e conhecimento de ervas medicinais.
O curandeiro no contexto regional não se limita a manusear ervas medicinais, mas envolve rituais geralmente de invocação de espíritos e ‘simpatias’ para obter êxito nos tratamentos’ (Silva 2002.153).
Já as famílias de Belo Horizonte são quase todas evangélicas, principalmente os descendentes diretos de ‘Gilmar’. Na sua maioria pertencem à Igreja do Evangelho Quadrangular, sendo alguns obreiros da mesma, como o próprio ‘Gilmar’ e dois dos seus filhos. Um dos seus genros é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Há evangélicos de outras igrejas, sendo todos pentecostais. Sobre as famílias de São Paulo, não obtivemos informações (Silva 2002.153).
Construíram de mutirão uma capela católica na Fazenda Campo, e a vida espiritual é liderada por uma benzedeira e o filho e o neto de Pedro Sangê. O consumo da bebida fermentada chamada ‘chamego’ é um elemento importante, tanto da sua identidade étnica, como todas sua atividades comunitárias (Caldeira 2003).
Cosmovisão:
Os Aranã deram início ao processo de investigação da sua própria história, sua origem étnica, seus costumes e se inseriram no movimento indígena, reconhecendo sua parte integral com todos os outros povos indígenas. Recebeu o apoio do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), do GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) e do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) (Caldeira 2003). Desprezados como pessoas inferiores, ‘caboclo’, ‘desta forma, são vistos como mão-de-obra barata ou desclassificada das grandes fazendas da região, principalmente os da família Caboclo, que vêm de uma realidade histórica não tão antiga de escravidão. Com a chegada dos Pankararu e dos trabalhos da indigenista Geralda Soares, bem como o próprio movimento pelo reconhecimento dos Aranã, a população regional vem sendo conscientizada sobre a questão indígena, mas isto é um processo lento, que certamente perdurará por alguns anos (Silva 2002.157).
Apesar da dispersão eles mantiveram a consciência da sua indianidade, e talvez o que mais contribuiu para isto foram os encontros familiares. Periodicamente eles promovem o encontro de todas as famílias para se confraternizarem e firmar os laços fraternais. Estes encontros são motivos de festa e comemoração para todo o grupo que se alegra e aproveita para cantar, contar histórias e rezar. Esta é sem dúvida uma das principais manifestações culturais deste povo, pois evidencia o sentimento de “grande família”, se distinguindo como segmento diferenciado da sociedade regional.
Nestes encontros, aproveitam ainda para fabricar e ingerir uma bebida muito peculiar das famílias Aranã, chamada de ‘chamego’. “Ela é feita a partir de uma planta corante, conhecida como ‘quiabinho’, garapa de cana e cachaça, como ensinou Pedro Sangê” (Mattos, 1998.19), e eles afirmam que ninguém fica bêbado ao ingeri-la, mas apenas ‘chamegoso’, daí o seu nome. Segundo Geralda Soares, realmente a bebida possui baixo teor alcoólico. O próprio cultivo do ‘quiabinho’ também é uma manifestação cultural, pois é muito peculiar das suas famílias. (Silva 2002.154).
Comentário:
‘No grupo do Vale do Jequitinhonha engajado na luta pelo reconhecimento, não há evangélicos e nenhum trabalho missionário voltado a eles. A única presença evangélica se faz pelo trabalho do GTME, mas este se limita à assistência social, não se engajando em trabalhos de proclamação. A obreira do GTME, Geralda Soares, é católica’ (Silva 2002.157).
Sendo um povo ’emergente’ e ainda em processo de reconhecimento étnico, o desejo e necessidade de reafirmação étnica e cultural é muito grande, podendo levá-los a resistir ao que vem de fora. Sua tendência no momento pode ser mais de retornar às práticas de rituais, como acontece na Fazenda Campo, do que dar atenção a uma outra “crença”. Entretanto, é óbvio que o seu alto grau de integração com a cultura regional e o conhecimento do evangelho, ainda que elementar, pela vertente católica, podem ser abridores de portas, ampliando as possibilidades de abordagens missionárias. Araçuaí possui boas e bem estruturadas igrejas, como a Batista, Presbiteriana e Assembleia de Deus. Coronel Murta também possui algumas igrejas. A questão básica é a falta de consciência e visão missionária. Um intenso trabalho de conscientização seria necessário.’ Projetos de assistência jurídica e educação são necessários. Obreiros evangélicos Aranã da Igreja Evangelho Quadrangular de Belo Horizonte seria uma possibilidade (Silva 2002.158).
Bibliografia:
- CALDEIRA, Vanessa. 2001a, ‘Povo Aranã’, In: Revista Informativa da Qualificação Profissional. Belo Horizonte: SETASCAD, novembro de 2001.
- CALDEIRA, Vanessa, 2003, ‘Aranã’, Povos Indígenas do Brasil, Instituto Socioambiental, São Paulo. pib.socioambiental.org/pt/povo/arana
- DAI/AMTB 2010, ‘Relatório 2010 – Etnias Indígenas do Brasil’, Organizador: Ronaldo Lidório, Instituto Antropos instituto.antropos.com.br
- MATTOS, Izabel Missagia de, 1998, O Nome de (do) “Índio” – Memória e Identidade Étnica de uma Família Sertaneja. São Paulo: UNICAMP.
- OLIVEIRA JÚNIOR, Adolfo Neves de. ‘Faccionalismo Xukuru-Kariri e a Atuação da FUNAI’. geocities.yahoo.com.br/esp_cultural_indigena Capturado em 29/07/02.
- SIL 2013, Lewis, M. Paul, Gary F Simons, & Charles D Fennig (eds) 2013. Ethnologue: Languages of the World, Seventeenth edition. Dallas, Texas: SIL International. Online version: www.ethnologue.com
- SILVA, Cácio Evangelista, 2002, ‘Minas Indígena: Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens Missionárias nos Grupos Indígenas de Minas Gerais’, Viçosa, MG, Dissertação apresentada ao Programa Pos-Graduação da Escola de Missões Transculturais do Centro Evangélico de Missões, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Missiologia.
- SILVA, Cácio, 2008, Fenomenologia da Religião, Anápolis, GO: Transcultural Editora e Livraria.