David J. Phillips
Autodenominação: Yuhupdeh (yuhup “pessoa, gente” + deh coletivizador = pessoas, povo), termo usado no dia-a-dia para identificar todos aqueles que pertencem à etnia. Porém, foi convencionado tratar o povo com a palavra coletivizada e a língua com a palavra no singular, portanto, fala-se povo Yuhupdeh e língua Yuhup. (Silva e Silva 2007.2). Na literatura linguística e etnológica, eles têm sido chamados de Yahup, Yohup, Yɨhup, Yuhup, Juhup, Yuhub-de, Yuhupda, Yuhupdã, Yuhupde e, mais frequentemente, Yuhup. O próprio povo, porém, se autodenomina Yuhupdeh (Silva e Silva, 2007.2; Silva e Silva 2012.53).
Outros nomes: “Maku” é um termo pejorativo, identificado como de origem Arawak, significando etimologicamente “sem fala” – maáko, mas semanticamente “selvagem, primitivo e servidor” – máako. Trata-se, portanto, de um termo impróprio, com forte carga de preconceito. Compreendendo o desconforto de alguns desses povos ao serem assim referidos e reconhecendo as limitações das outras sugestões para substituir o termo pejorativo ‘Maku’ (‘Nadahup’ que exclui os Kakua e Nukak, ‘Negro-Japurá’ ou ‘Uaupés-Japura’ que exclui os Nukak), Silva e Silva propuseram o termo ‘Guaviare-Japurá’, por ser a mesopotâmia (Rio Guaviare ao norte e Rio Japurá ao sul) onde trais povo se encontram. Os povos conhecidos pela denominação pejorativa Maku são os Nadëb, Dâw, Yuhupdeh, Hupdeh, Kakua e Nukak.
População: 600 (DAI/AMTB 2010), no território brasileiro em 141 famílias, totalizando 754 pessoas (Silva, 2010, p.7). Na Colômbia, eles não ainda foram encontrados, mas parece seguro afirmar a existência de uns 250 indivíduos ali, o que permite estimar a população Yuhupdeh num total de 1.000 pessoas. (Silva 2012.53).
Localização: Sete das suas comunidades estão nos Igarapés Ira, Cunuri, Samaúma, Castanha e Cucura, todos na margem direita do Rio Tiquié, Alto Rio Negro, AM. Uma oitava comunidade localiza-se no baixo Rio Apapóris, nas proximidades da sua foz no Rio Japurá, Alto Rio Solimões. Na Colômbia, temos notícias de uma comunidade no Rio Traíra, limítrofe com o Brasil, e outras no Rio Apapóris e seus igarapés afluentes Jotabeya e Ugá, todos da margem esquerda do mesmo (Silva e Silva 2012).
Terra Indígena Alto Rio Negro: Homologada e registrada no CRI e SPU de 7.999.380 ha com uma população de 26.046 (SIASI 2013) de 16 etnias.
Língua: Yuhup, com cerca de 1000 falantes (Silva e Silva 2012);360 falantes em 1995 (SIL). Entre os linguistas, dos pesquisadores mais recentes que realizaram estudos comparativos da família, Valteir Martins, reconstituindo o protomaku, sugeriu que os sete povos, Nadëb, Dâw, Yuhupdeh, Húpd’äh, Kakua, Nɨkak (Nukak) e Wããnsöjöt (Puinave), fazem parte da família, porém, os distingue em orientais (os quatro primeiros, distinguindo dois seguimentos dos Nadëb), aos quais direciona sua pesquisa, e os ocidentais (os três últimos). Outros pesquisadores, como Epps, Boloñonez e Hiquita, discordam que os três últimos povos fazem parte da família. Se por um lado, o léxico e a fonologia dos Kakua e Nɨkak se distanciam das demais línguas, os traços gramaticais e socioculturais parecem suficientes para afirmar o parentesco. Os Wããnsöjöt (Puinave) parece de fato ser um caso à parte (Silva e Silva 2011.56).
Origem étnica: A origem e a possível proto conexão de parentesco entre os povos chamados ‘Maku’ é desconhecida e debatida. Há similaridades linguísticos alem da cultura caçador- coletador. Realmente muitas similaridades podem ser resultado de difusão areal e não de filiação genética, porém, existem nessas línguas traços muito peculiares, inexistentes na família Tukano que, portanto, precedem o fenômeno de difusão. Sobre os Wããnsöjöt (Puinave), é certo que ainda carece de melhores estudos comparativos, mas a julgar pelos dados de Girón Higuita, parece de fato ser um caso à parte.
‘Com pequenas variações e exceções, esses povos são conhecidos como tradicionalmente caçadores coletores, nômades ou seminômades com um alto grau de mobilidade e subserviência a povos vizinhos sedentários de tradição agrícola. Etnicamente endogâmicos, tendo os clãs como unidades exogâmicas, descendência patrilinear e residência bilateral. Suas línguas são caracteristicamente isolantes e tonais, com acentuada incidência de glotalização e laringalização, bem como gramáticas complexas marcadas por aspectualidade, serialização verbal e combinações tonais.’
‘As similaridades, entretanto, não anulam as diferenças.
1. Assim, ao contrário dos demais, os Nadëb têm uma tendência mais matrilocal, os Dâw tem casamento interditado entre os primos cruzados patrilineares, os Yuhupdeh possuem clãs igualitários e os Húpd’äh formam metades clânicas.
2. E suas diferenças não se limitam à organização social, havendo distinções também na mitologia, cosmologia e assim por diante.
3. As línguas mantêm igualmente seus traços distintivos, com os Nadëb ocupando a posição de maior distância e os Dâw sendo intermediários. Os Kakua e Nɨkak possuem línguas muitos similares e, segundo seus pesquisadores, mutuamente inteligíveis. Os Yuhupdeh e Húpd’äh também possuem línguas bem similares, porém, ao contrário das afirmações de alguns, o Yuhup não é um dialeto do Hup e essas línguas não são sequer mutuamente inteligíveis. É fato que apresentam um grande percentual de raízes idênticas e outras semelhantes’ (Silva e Silva 2012.59).
História: Houve ‘uma migração a partir do baixo Apapóris, resultando na atual dispersão que cobre hoje daquela área à margem sul do Rio Tiquié. É possível que no passado tenham habitado o interflúvio Traíra – Pira-Paraná, mantendo contato com os Barassana conforme S. Hugh-Jones. As razões da dispersão não são claras, havendo, porém, repetidas menções a um período de conflitos com um povo aguerrido, por eles chamado de Baak-uy-rehou “gente zarabatana”, informação esta registrada também por Pozzobon na década de 1980. Uma segunda migração teria se dado do Traíra para o Igarapé Castanha, via seu afluente Peneira, e dali para o Igarapé Cucura. Descendo o Apapóris e subindo o Rio Traíra, tudo indica que as primeiras migrações em direção ao Tiquié foram pelo Igarapé Ira. Um fato que corrobora com esta hipótese é que o Ira foi vastamente assimilado pelas narrativas mitológicas o que ainda não aconteceu com os demais igarapés do Tiquié por eles habitados. Do Igarapé Ira migraram pelo interior da floresta para o Igarapé Cunuri e posteriormente para o Igarapé Samaúma’ (Silva e Silva 2012.61).
Por séculos os povos chamados Maku serviram os povos Tukano, mas o relacionamento é simbiótico. Trabalham nas roças por poucos resultados, mas são convidados às festas dabucuri, trazendo frutas e carne da floresta, porém sempre tratados como inferiores (Hemming 2003.251).
‘No início do século 20 eles já estavam presentes pelo menos nesses dois principais igarapés, pois, como citado, foram mencionados em 1904 por Koch-Grünberg. Porém, ao contrário dos Húpd’äh da margem norte do Tiquié, os Yuhupdeh se mantiveram por mais tempo distantes dos povos Tukano sendo por estes menos influenciados do que aqueles. Ainda hoje, só existe convívio interétnico semipermanente nos igarapés Castanha e Cucura, onde duas comunidades mantêm relações de maior proximidade com os Dessana.’ ‘Possivelmente nas décadas de 1950 ou 1960, epidemias de gripe e sarampo varreram vários grupos Yuhupdeh em diferentes igarapés. Morreram famílias inteiras nos igarapés Ira e Castanha e temos notícias de eventos similares no Apapóris também em datas posteriores. Nesses episódios morreram muitos velhos detentores dos conhecimentos tradicionais, antes de repassá-los para os mais jovens, gerando uma acentuada perda cultural'(Silva e Silva 2012.61).
‘Até a década de 1970 viviam em pequenos bandos familiares transitando pelo interior da floresta e igarapés sem assentamentos fixos. Periodicamente essas famílias se encontravam quando então faziam festas regadas por bebidas tradicionais e danças, onde também aconteciam os casamentos. É curioso e sugestivo o fato das palavras usadas hoje para comunidade serem yãm, mesmo que “dança”, höhöön”clareira” e sãhata’ “ajuntamento” ‘(Silva e Silva 2012.61).
Nos anos 70, os Salesianos, que tiveram escolas para os povos Tucano há décadas, tentaram a escolarização dos Yuhupdeh. O regime era de internatos escolares e requeria que as crianças não falassem mais suas línguas ou não lembrassem-se da sua cultura (Cabalzar 2006.91-96). No caso dos Yuhupdeh isso exigiu a formação de comunidades e a sedentarização, mas a continuação do nomadismo frustrou a educação. Os padres não entenderam nada da vida e cultura nômade e cometeram todo tipo de erro cultural. Tentaram estabelecer uma aldeia para os Húpd’äh no Igarapé Japu, no alto Rio Uaupés, na década 70. Seis grupos vieram e uma igreja e roça foram estabelecidas, mas houve uma briga entre os índios e o padre residente morreu. Outras aldeias foram tentadas em Serra dos Porcos e Fátima no rio Uaupés. Conforme Hemming em 1974 houve uma briga entre Húpd’äh e Yuhupdeh, as casas da aldeia eram queimadas e os índios voltaram para o mato. Ainda mais uma experiencia em Cucura, no rio Tiquié, com uma pequena criação de gado, resultou em epidemias matando muitos dos indígenas. Os ‘Maku’ estavam no dilema, querendo os produtos industriais e a educação para suas crianças, mas rejeitando o regime dos padres (Hemming 2003.253).
Jorge Pozzobon foi o primeiro etnólogo que desenvolveu pesquisas entre os Yuhupdeh em 1981 e nos anos seguintes tornou-se defensor do povo, lutando para a demarcação de suas terras (Silva 2012.12). Em 2006 o Município contratou professores Yuhupdeh e deu os recursos financeiros e com a documentação das famílias passaram a receber benefícios governamentais.
Estilo de Vida: Os Yuhupdeh são caçadores-coletadores, mas ‘o quadro atual é de um povo em sedentarização, porém, mantendo traços evidentes do seu tradicional nomadismo. ‘Adaptaram-se ao sistema agrícola, desenvolvendo um meio-termo de subsistência. A caça não é mais sua principal fonte de alimentação, sendo substituída pela pesca e mantendo-se aquela como secundária. As tradicionais zarabatanas com curare, próprias para caça de animais arbóreos, foram substituídas pelas malhadeiras de nylon, próprias para pesca ostensiva. A adaptação ao sistema ribeirinho-pesqueiro fica evidente pelo conhecimento ictiológico que hoje detêm, reconhecendo mais de 190 espécies de peixes com nomes próprios em sua língua. A coleta de frutas não é mais sua principal atividade, mesmo porque coleta e caça são intimamente relacionadas, de forma que diminuindo uma a outra será naturalmente afetada. Em seu lugar, desenvolveram o cultivo de mandioca cujos derivados, como beiju e mingau, tornaram-se a base alimentar, e tal adaptação fica evidente pelo conhecimento agrícola que hoje detêm, reconhecendo mais de 60 variações de mandioca, com nomes próprios em sua língua’ (Silva e Silva 2012.63).
‘Isso não significa que abandonaram a caça e coleta, nem que perderam o conhecimento tradicional. Tais atividades continuam sendo as mais prazerosas e atrativas e preservam o conhecimento de mais de 190 tipos de frutas, mais de 180 tipos de pássaros e mais de 70 tipos de caças e seus hábitos. Nem significa que se tornaram totalmente sedentários, pois apesar de viverem em comunidades em torno de escolas, os deslocamentos de famílias para acampamentos de pesca são muito frequentes. Alguns chegam a passar, em períodos descontínuos, mais da metade do ano em acampamentos. E mais recentemente, os deslocamentos para a cidade, motivados pelos recursos financeiros, tem se tornado tão frequentes quanto aqueles para os acampamentos.’
‘A prática de intercâmbio de produtos também minguou, porém, não acabou. Apesar de cultivarem mandioca, suas roças são pequenas e as mandiocas colhidas precocemente, de forma que não conseguem produzir a preciosa e tão desejada farinha. Uma produção em maior escala demandaria o cultivo de pelo menos duas roças grandes por família, o que significaria reduzir drasticamente a mobilidade e este é um preço alto demais, que ninguém está disposto a pagar. Mas esta mobilidade é hoje mantida não pelo remo e sim pelos pequenos motores “rabeta” que se alimentam de combustível. Com isso, estão frequentemente às margens do rio principal trocando produtos da floresta por farinha e gasolina. E, sim, também por não pouca bebida alcoólica'(Silva e Silva 2012.63). Caçam aves, diversos animais e nos rios inclusive o jacaré e a ariranha, a carne é aproveitada mas não a pele. O boto e a arraia são evitados por motivos mitológicos e porque ‘a carne é ruim’. Aproveitam a pela da onça pintada por motivo externos e não por motivos traicionais.
Artesanato: Os aturas, balaios com uma embira para colocar na testa e feitos de cipó, são típicos dos Yuhupdeh e dos Húpd’äh e são usados para transportar mandioca (Hemming 2003.250).
Sociedade: Há 16 clãs na região do rio Tiquié que são dispersos em várias comunidades. Os Yuhupdeh viviam em tapiris improvisados como abrigos funcionais, sem valor ritual, em contraste com os povos Tukano, cujas malocas tinham um simbolismo social e ritual rico. O impacto do regime Salesiano resultou na substituição e dispersão de famílias pela formação de comunidades e pela sedentarização. Mas a mobilidade ainda frustrou este processo e resultou em comunidades pequenas com entre 20 e 70 pessoas, formadas de famílias de casais quase sempre patrilocais (Silva 2012a.21). 79% dos homens moram com os irmãos reais e o pai (Silva 2012a.27). Casamento com outra etnia, os Húpd’äh por exemplo, é permitido e os filhos pertencem ao clã patrilinear do pai Yuhupdeh (Silva 2007).
Em contraste com os povos Tukano em seu redor, que têm um forte sistema interétnico exogâmico, os Yuhupdeh são endogâmicos intraétnicos. O casamento ideal é entre primos cruzados bilaterais como troca entre os clãs. Os casamentos em uma pesquisa de 184 casais vivos ou falecidos por Cácio Silva são 45% da mesma comunidade ou do mesmo igarapé, porém 94% eram exogâmicos dos clãs. Somente 6% dos casamentos era fora desta regra (Silva 2012a.14).
Os Yuhupdeh se identificam conforme seu clã, que por sua vez, identifica o indivíduo como membro da etnia. Todos os clãs são igualitários e não há hierarquia entre eles nem restrições de casamento. Todas as pessoas do clã, próximas ou distantes, conhecidas ou desconhecidas são ‘parentes’ ou ‘nossos irmãos’. Afins ou ‘nossos cunhados’ são os membros dos outros clãs Yuhupdeh e ‘não parentes’ são as outras etnias. Dentro dos clãs são subclãs nomeados ‘grande’ e ‘pequeno’, implicando uma hierarquia dentro dos clãs, mas atualmente este conceito é fraco (Silva 2012a.20).
‘Enquanto nas narrativas míticas Tukano da canoa – anaconda de transformação, os ancestrais dos seus sibs saíram todos em um só lugar, para os Yuhupdeh os ancestrais dos seus clãs saíram em diferentes lugares. E também não saiu apenas um ancestral de cada clã, mas grupos de pessoas, famílias inteiras de cada clã. Assim, os primeiros Yãam-uy-reh “clã onça” se transformaram nas proximidades da Serra Tukumã e os Soop-uy-reh “clã funil” na Serra Bacurau, ambas do Igarapé Ira. Os Páç-uy-reh “clã pedra” se transformaram no Rio Traíra e outros clãs nos rios Apapóris e Japurá. A dispersão das transformações dos primeiros ancestrais já indica o igualitarismo clânico'(Silva 2012a.20).
A sociedade é muita individualista. A resolução dos conflitos é pelo individuo ofendido saindo sozinho na mata para absolver a dor da ofensa por algum tempo separado da comunidade. A vingança não é praticada, os assentamentos se dividam e se separaram de lugar.
Escolarização: Na década de 1970 ‘iniciaram as tentativas de escolarização dos Yuhupdeh pelos Salesianos, apoiados pelo Município, que já atuavam há décadas entre os povos Tukano. As primeiras escolas criadas foram nos igarapés Ira, Cunuri e Castanha. Na mesma década, aqueles do Igarapé Cucura se aproximaram de uma comunidade Dessana, a convite desses, para introduzirem suas crianças na escola e os do Igarapé Samaúma só receberiam escola em 2007. O processo de escolarização desencadeou o processo de sedentarização, demandando a criação de comunidades e intensificação da agricultura’ (Silva e Silva 2012.63).
‘As primeiras tentativas de escolarização foram frustradas, devido, em especial, à forte mobilidade das famílias que não deixavam seus filhos para trás, bem como, às muitas brigas que surgiram nas tentativas de viverem juntos. A extração de seringa e trabalho nos garimpos também eram fortes concorrentes das escolas. E a presença de professores Tukano era outro motivo de embates e dispersões. Depois de muitas vezes fechadas e reabertas, em 2006, apenas as escolas do Ira e do Cunuri estavam em funcionamento, porém, em situação precária e quase inativas. A partir daquele ano, o Município promoveu um processo que podemos chamar de “destukanização” (Carvalho, 2007, p.23) das escolas Yuhupdeh e Húpd’äh, com a contratação de professores da própria etnia e, com isso, iniciou-se a introdução sistemática de recursos financeiros nas comunidades, através do salário dos professores.’
‘Na sequência veio a documentação das crianças para serem matriculadas na escola, exigindo, portanto, a documentação também dos pais. Com esta, passaram a ter acesso aos benefícios governamentais como bolsa família, auxílio maternidade e aposentadoria. Surgiu também a figura do agente de saúde indígena, também remunerado, e como o dinheiro não pode ser utilizado nas comunidades, nos últimos anos houve um aumento vertiginoso das visitas à cidade, com as mais diversas implicações socioculturais. Os muitos cursos e encontros governamentais para professores indígenas, bem como toda a prestação de contas e relatórios escolares centralizados na cidade, colaboram com esse movimento. Esse processo de capitalização e inserção na economia de mercado está em curso, como uma das muitas consequências do processo de escolarização, e é um movimento irreversível, com consequências imprevisíveis’ (Silva e Silva 2012.64).
‘No entanto, apesar das sérias implicações da escolarização, foi nela que os Yuhupdeh encontraram um meio de superar seu prejuízo histórico e romper com as barreiras que os limitavam, frente ao contexto de marginalização social a eles imposta. A escola vem gerando sérias mudanças socioculturais, mas são resultados de uma escolha do povo’ (Silva e Silva 2012.64).
Religião: Todo o universo é povoado por diferentes seres, muitos dos quais são poderosos e perigosos xamãs, que atacam causando males, doença e morte (Silva e Silva 2012.65). O mato está infestado com o curupira, ‘dono das caças’, e os mais temidos seres peludos com dentes grandes. As plantas que têm propriedades espirituais, como as samambaias. O rio é habitado pelo sucuri que ataca pescadores e o boto que pode enganar as mulheres. O ar também é povoado com seres maus. Todos estes seres se reproduzam, são corporais mas invisíveis e muitos podem fazer feitiçaria. Alguns animais têm uma natureza dupla, tanto animal como espírito. Os astros, o sol e a lua e as constelações, são também gente.
Há uma força de vida chamada dääwä-wág, que anima e sustenta o universo. ‘Nossa tese é que essa força é a base de todo o xamanismo Yuhupdeh. ‘Os diferentes entes do universo possuem hãg-wääg, literalmente “coração”, mas, de fato, “alma”, sendo este o ponto de concentração da dääwä-wágem cada ser de forma que sua extinção gera morte. A existência desse centro de captação da força é o que mantém em cada ser o traço de humanidade e o conecta a todo o universo’ (Silva e Silva 2012.66). Esta força é impessoal, onipresente no cosmo e aleatória.
Nos mitos antigos, os xamãs descobrem as fórmulas de intervenção na däwä-wáge podem forçar resultados para o bem, chamados de mih-riinou “benzimentos”, ou para o mal, chamados de kũj’ ou “sopros, estragos”, ou seja, os benzimentos e sopros nada mais são do que fórmulas mágicas de manipulação da força para gerar resultados esperados ou desejados. Para tal, os xamãs precisam adquirir profundo conhecimento mitológico e desenvolver seu pãh-këyou “pensamento, consciência”, o que fazem através do uso de estimulantes e alucinógenos’ (Silva e Silva 2012.66). ‘Os mitos possuem diferentes versões, seja entre clãs ou entre comunidades mais distantes, e são usados de forma utilitária. Em especial, são a fonte das fórmulas mágicas chamadas de benzimento e sopro, utilizadas pelos xamãs nas mais diferentes situações da vida’ (Silva e Silva 2012.64).
Cosmologia: ‘A mitologia Yuhupdeh do Tiquié reflete os processos de intercâmbio cultural e difusão areal de conhecimento, com mitemas comuns a toda a área etnográfica do noroeste da Amazônia. Seu mito fundante versa sobre a viagem da “canoa da transformação”, que sai de um grande “lago de leite” no leste do Brasil e segue pelos rios Amazonas, Negro, Uaupés, Tiquié e Igarapé Ira, trazendo os antepassados de todos os povos da região, cada um com suas especialidades. Com sua versão própria e contrariando as versões de outros povos da área, o comandante da cobra-canoa era o antepassado dos Yuhupdeh e a ordem de transformação nada indica questão de hierarquia. Os Yuhupdeh não tiveram origem em um antepassado comum, mas sim, cada clã teve sua origem em uma família não nomeada que saiu em local específico'(Silva e Silva 2012.64).
‘Tal mito os aproxima dos demais povos da região que compartilham o mesmo, porém, sua versão própria também os distingue e fixa seus símbolos identitários. Na versão Yuhupdeh, ao emergir do dëh-pun-dëh-hóyou grande “lago de leite”, o comandante da embarcação, que era seu herói mítico Saah-Säw, trouxe consigo um tãw-ag-tëgou “bastão de xamã” e nele vários objetos que representavam especialidades étnicas. O primeiro que iria escolher seus objetos seria o Tukano, mas este repugnou-se de fazê-lo pois o bastão estava sujo de fezes. O antepassado “branco” foi mais esperto e pegou logo o livro, o chapéu e a espingarda; o Tukano criou coragem pegando em seguida o machado e o terçado (facão); por fim, o antepassado dos Yuhupdeh pegou a zarabatana, o arco e a fecha. E os símbolos identitários são assim formulados por eles: “Por isso os ‘brancos’ são mais desenvolvidos, pois o chapéu lhes ajuda a pensar, no livro eles encontram tudo que querem saber e com a espingarda vencem a todos; os Tukano são mais desenvolvidos também porque com o terçado eles roçam, cortam coisas, e com o machado fazem derrubadas para plantarem roça; e a gente, com a zarabatana e arco, só caçamos mesmo” ‘(Silva e Silva 2012.69).
O universo (wag) é um espaço cheio de seres que compartilham da força da vida (dääwä-wág). O ambiente da humanidade de floresta e rios é a ‘terra dos mortais’ (yuhup-bö-saah). O fim da terra no rio abaixo é o ‘anus do rio’ (dëëh-yé’-höön), um grande buraco donde sobe o sol todos os dia. Em cima é o ‘caminho do sol'(wero-tíw) e ‘lago do sol'(wero–hóy), muito farto em peixes. Alguns creem que a chuva abastece os rios com peixe. Rio acima há outro fim da terra na forma de um grande buraco chamado ‘limite da comunidade’ (yãm-mee) por onde o sol se põe. O submundo é a ‘terra do rio umari'(péj-dëëh-saah), um paraíso, onde há grande fartura e ninguém passa fome ou precisa trabalhar. Aqui vivem a gente-da-fruta-umari e várias outras gentes-fruta, que nos veem como fedorentos (Silva e Silva 2012.65). Os heróis Saah-Säw e seu neto Dö’-Saa participaram da organização do universo. Saah-Säw ressuscitou o sol-lua da morte para ele percorrer seu caminho no céu. O trovão teve uma perna amputada por piranhas num ato de vingança do herói mítico Dö’-Saae subiu assim para o alto de onde ressoa sua voz (Silva e Silva 2012.66).
Comentário: Um casal do SIL, Daniel e Cheryl Jore, começou o estudo linguístico da língua Yuhup em 1975 e produziram a Análise Preliminar da Língua Yahup (1980). Três dissertações de fonologia seguiram entre 1986 e 1995 por Reina Gutierrez, Dalva Del Vigna e Aurise Lopes, esta continua vivendo com os Yuhupdeh. O estudo foi avançado sobre a morfologia e sintaxe por Ana Maria Ospina Bozzi em 2002. Em 2006 Cácio e Elisângela Silva foram convidados para apoiá-los na área da educação com produção de material didático (Silva e Silva 2012). ‘Apesar de lançar mão dos estudos anteriores, nossa proposta ortográfica é baseada em análise própria, disponível na Associação Pró-Amazônia. Nossos contatos com os Yuhupdeh tiveram início em maio de 2006, mas o trabalho linguístico foi realizado entre agosto de 2006 e junho de 2007, cobrindo um período de dez meses. Nesse período, trabalhamos dois meses com informantes linguísticos na cidade e passamos outros três meses, divididos em dois períodos, imersos na língua e cultura dos Yuhupdeh, na comunidade São Martinho, do Igarapé Cunuri, mantendo contato também com as comunidades São Domingos Sávio, do mesmo igarapé, e Guadalupe, do Igarapé Ira'(Silva 2007).
Os Yuhupdeh crêem na força da vida (dääwä-wág) que é impessoal e aleatória. Conforme a Bíblia o Espírito de Javé pairava sobre o início da criação e participava em todos os atos criativos e pessoais de Deus (Gen 1:2). Os atos de criação foram atos de fala de Deus, que envolve a mente e vontade pessoal de Deus e não uma força impessoal. Os animais e o homem são feitos de elementos da terra e animadas pelo sopro do mesmo Espírito (Gen 2:7; Num 16:22 = o Deus de todos os espíritos de toda carne; Jó 33:4; Zac 12:1), e se tornam ‘seres viventes’ (nefesh hayya) ou ‘almas’ (Gen 1: 24, 2:7), dados uma parcela da sua energia como o ‘espírito’ da pessoa, semelhante ao hãg-wääg dos Yuhupdeh, porém o Espírito não é força impessoal. As criaturas, inclusive os homens, são animados e sustentados, conforme suas naturezas de espécies diferentes (Gen 1:25), pelo Espírito de Deus. A diferença entre os homens e os animais que os primeiros são a ‘imagem de Deus’, isso é representantes ou mordomos do Criador para ‘dominar’ ou reger a terra, inclusive os animais (Gen 1:26-28). A Bíblia revela Deus em dialogo com sua ‘imagem’ por um progresso de atos de fala em promessas, alianças, leis, sabedoria, pelas quais forma a história do mundo.
Todo aspecto do meio ambiente é controlado diretamente pela presença atuante de Deus (Sl. 104) inclusive a vida dos animais (Sl. 104.29-30), são cônscios conforme as limitações da sua natureza da presença do Criador. Por isso não há evidencia de seres malefícios, pois ‘tudo era muito bom’ e o poder ‘dominar’ em nome de Deus exclui o temor, o pavor da incerteza e domínio de seres não criados. Não há evidencia na criação de uma dupla natureza dos animais, física e sobrenatural. As pesquisas nas últimas décadas demonstram que muitos dos animais têm sentimentos e memoria e não são apenas ‘maquinas’ de instintos. Pelo Espírito cada criatura recebe o dono da vida e sua posição entre as espécies.
É Deus que determina pessoalmente todo o cosmo e todos os acontecimentos da história e da natureza. O Criador se comunica e se revela com promessas, mandamentos (Gen 2:16) e alianças, a Palavra de Deus. O Espírito também é revelado ser Pessoa com emoções de alegria e tristeza conforme o relacionamento moral dos homens. Para o homem a própria vida e a existência das outras criaturas têm a natureza de um donativo gratuito de Deus, que envolve uma reposta de gratidão e confiança no Criador, um relacionamento semelhante a uma aliança (berith), que traz responsabilidade de culto e serviço a Deus e para com a criação. O meio de ligação entre as partes do cosmo é a presença ativa do Criador, que pode ser conhecido por sua Palavra. A Palavra comunica a retidão e justiça necessárias do homem, que são do caráter divino. A tarefa dada ao homem de ‘dominar’ e ‘subjugar’ implica no perigo potencial da natureza rebelar e surgimento mais tarde de maiores males como o Diabo (como fera pronto para dar bote Gen 4:7; Jó 1; Mat 4:1; 1 Jo 3:12).
Se a graça divina não está presente, através da ação do Espírito, a presença do maligno na vida humana produz tormento de alma. O espírito maligno estava terrificando a alma de Saul (1 Sam 16:14). Todos estão sob o controle de Deus, sem ou com seu uso de instrumentos humanos. O resultado de substituir a autoridade da natureza no lugar de Deus é as forças malignas entre as criaturas. O encontro com a serpente foi um teste da capacidade humana de ‘dominar’ a natureza por obedecer a Deus. Um aviso contrário foi dado por um jumento mais tarde (Num 22:28s). A natureza pode ser regido pelo homem, sem temor, por obedecer a Palavra de Deus.
O ‘conselho’ da serpente (Gen 3:1s) e a admiração materialista da natureza – parecia agradável, etc. (Gen 3:6) pesaram mais que o conhecimento do Criador, e tornou-se a autoridade empiricista e positivista à qual a humanidade se submete ainda hoje. O temor e incerteza da vida originaram e o conceito de uma natureza personalizada de maldade começou quando a comunhão e confiança no Criador foram rejeitados. O encontro com a cobra indica que o ‘dominar’ e ‘subjugar’ deve ser pela Palavra de Deus (Gen 3:1-5). Pelo Evangelho a ‘força da vida’ é o Espírito Santo faz com que a reconciliação ao Criador feito pelo Filho de Deus operar nos seus discípulos, para que sirvam ao Pai. Eles são a imagem de Deus restaurada para manejar a natureza, sem temor ou pavor, para o bem ecológico de todos. As forças da natureza devem ser enfrentadas pela fé no Criador. O Cristão deve aprender do indígena uma atitude mais simpática para com a natureza e dos projetos ecológicos conservadores (David J. Phillips).
Bibliografia:
- CABALZAR, Aloisio, 2006, Povos Indígenas do Rio Negro, Cabalzar ed, São Gabriel da Cachoeira, AM: FOIRN/ISA.
- DAI/AMTB 2010, ‘Relatório 2010 – Etnias Indígenas do Brasil’, Organizador: Ronaldo Lidório, Instituto Antropos –instituto.antropos.com.br.
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